Artigo Cientifico
Autores: Priscila de Mattos Machado Andrade, Beatriz Gonçalves Ribeiro, Maria das Graças Tavares do Carmo
Papel dos lipídios no metabolismo
durante o esforço
Resumo
Estudos apontam que os ácidos graxos são importantes fontes de combustível para os músculos. A proposta desta revisão é discutir o metabolismo dos ácidos graxos assim como os fatores limitantes do processo de oxidação destes durante o exercício. A hidrólise dos triglicerídeos endógenos aumenta progressivamente durante exercícios e sua taxa de oxidação é determinada pela demanda energética da célula, a liberação dos adipócitos, transporte até a mitocôndria e a oxidação de outros substratos intracelulares como a glicose. Evidências sugerem que o aumento dos níveis plasmáticos de ácidos graxos em indivíduos treinados se dê em função da presença e da hidrólise dos triglicerídeos intramusculares. A oxidação de ácidos graxos é menor em exercícios intensos do que em moderados, em parte pela demanda energética da célula e alterações hemodinâmicas. Entretanto, ainda não está totalmente claro na literatura como funciona o metabolismo e a dinâmica do uso dos substratos disponíveis durante o exercício. Este artigo resume o metabolismo de lipídeos durante o exercício e as possíveis estratégias para amplificar o seu uso.
Palavras-chave: lipídeos, ácidos graxos, metabolismo, exercício físico, sistema imunológico.
Introdução
Metabolismo oxidativo dos ácidos graxos
O organismo para manter a sua homeostase depende diretamente da correta interação entre seus sistemas constituintes, o que é alcançado através de regulações específicas e estritamente controladas, que atuam sobre um conjunto de reações denominado de metabolismo.Os lipídeos são moléculas altamente energéticas, fornecendo 9 kcal/g, estocados anidramente nos adipócitos(quantitativamente mais importante) e músculos, fazendo com que sejam mais efi cientes quanto ao estoque energético por unidade de peso do que o glicogênio. São capazes de fornecer alto número de ATP, cerca de 147 moléculas (como por exemplo, um ácido graxo de 18 carbonos), processo que depende exclusivamente do alto consumo de oxigênio (26 moléculas) para sua oxidação. O grande questionamento que é gerado em torno do metabolismo oxidativo de carboidratos e lipídeos, visando o fornecimento de ATP em situação de alta demanda energética, são as limitações do processo. O glicogênio é rapidamente depletado, o que se ocorrer, leva à fadiga. A utilização dos ácidos graxos, cujo estoque é alto, se dá em função de que é o carboidrato o substrato dominante e que torna a oxidação dos ácidos graxos limitada. Para se obter energia a partir dos lipídeos armazenados nos adipócitos, várias etapas devem ser ultrapassadas. São elas: mobilização dos ácidos graxos dos adipócitos, seguido do transporte dos mesmos até as células musculares, mobilização dos ácidos graxos dos estoques intramusculares de triglicerídeos, transporte para dentro da mitocôndria e, por fi m, a sua β-oxidação [1]. A β-oxidação consiste na oxidação completa de ácidos graxos, que são submetidos a uma seqüência de reações de oxidação, hidratação, oxidação e tiólise,fazendo com que seja encurtado para dois carbonos. Este processo resulta na formação de acetilCoA, que será metabolizada no ciclo de Krebs, via comum do metabolismo [1]. A mobilização dos ácidos graxos (AG) depende da lipólise no teci do adiposo, realizada pela enzima lipase hormônio sensível (LHS), AMP cíclico dependente [2]. A degradação pode ser iniciada via estímulo nervoso simpático, através de descarga adrenérgica, pois as células do tecido adiposo contêm receptores (β-adrenérgicos)específicos para as catecolaminas. A ativação da lipase se dá por fosforilação via AMP cíclico que vai fosforilar a enzima proteína quinase que, por sua vez, vai ativar a lipase por fosforilação [2]. No exercício, a concentração de insulina é diminuída em função da ação das catecolaminas sobre o pâncreas. A epinifrina, e em menor extensão a norepinifrina, atuam inibindo a liberação da insulina.
No tecido adiposo, a sensibilidade dos receptores β-adrenérgicos também é aumentada levando a uma maior responsividade às catecolaminas, colaborando para o estímulo da lipólise [1].Cabe acrescentar que esta situação ocorre para exercícios de baixa a moderada intensidade, uma vez que em exercícios intensos há uma grande demanda energética, dependente dos carboidratos, o que pode levar ao aumento das concentrações de lactato. Entretanto, recentemente um estudo conduzido por Trudeau et al. [2] mostra que as concentrações de lactato não prejudicam a lipólise, onde nenhuma diferença foi encontrada quando lactato é infundido ou salina.Na lipólise, os triglicerídeos são transferidos até o sítio de clivagem enzimática [3] e, por ação da LHS, formarão glicerol e ácidos graxos. O glicerol formado, em virtude de sua polaridade, é capaz de se difundir rapidamente para o plasma. Além disso, o tecido adiposo não possui (ou possui em baixas concentrações) a enzima glicerol quinase, que não permite a reutilização do glicerol neste tecido [1].
Os ácidos graxos formados na hidrólise podem sofrer reesterifi cação se associando a uma molécula de glicerol-3 fosfato, formando novos triacilgliceróis no adipócito. Este processo é denominado ciclo dos triglicerídeos-ácidos graxos [1].A mobilização dos ácidos graxos é regulada pela reesterifi cação dos ácidos graxos que não foram para a corrente sangüínea. A taxa de reesterificação, é então, dependente da habilidade do plasma em carrear os AGL e da disponibilidade da glicose para a formação de glicose-6-P. A remoção dos AGL dos adipócitos é dependente da concentração de albumina e da perfusão do sangue pelo tecido adiposo [1].A lipólise é estimulada também por glicocorticóides e GH e, inibida por corpos cetônicos, insulina e lactato que em altas taxas, favorece a reesterificação dos AGL [5]. Quando os AGL passam pela membrana celular do adipócito passivamente ou via transportadores, a saber, FAT –Fatty Acid Translocase ou FATP – Fatty Acid Transport Protein, eles se movem pelo interstício até se ligarem à albumina e passarem pelo endotélio vascular. A ligação dos ácidos graxos livres com a albumina circulante é feita através de pelo menos três sítios de ligação de alta afi nidade. Isso permite com que 99,9 % dos AGL seja carreado ligado a estes transportadores. A saturação da albumina é um fator importante na mobilização dos AGL a partir dos adipócitos. A concentração de albumina no sangue humano é de 6 mmol/l, enquanto que a concentração dos ácidos graxos está entre 0,2-1,0 mmol/l, o que em condições fisiológicas, mostra que a capacidade de transporte dos AG ligados, não é um fator limitante para a oxidação dos mesmos pela célula muscular [1].Para os triglicerídeos serem captados pela célula muscular, se torna necessário o auxílio de proteínas carreadoras, tanto para ultrapassarem a membrana celular quanto para se locomoverem no interior do sarcoplasma, até a membrana mitocondrial externa. Os carreadores já descritos até o momento são a FAT, FATP e a FABP (Fatty Acid Binding Protein). Kiens et al. [6] demonstrou que a saturação do transporte ocorreem uma certa concentração de AG, o que indica uma limitação do processo pela membrana celular. Além disso, apesar de 99,9% do AG plasmáticos serem carreados pela albumina, a captação dos mesmos parece ser dependente da fração de AGL, ou seja, 0,1% do pool total de AG no plasma [1].Uma vez presentes no citoplasma das células musculares, os ácidos graxos podem também ser esterifi cados e estocados como triglicerídeos intramusculares.O segundo momento de captação é realizado para que os AGL sejam transportados para o interior da mitocondrial e possam, então, serem β-oxidados. Este transporte se dá via carnitina. Para que a oxidação ocorra, os AG precisam ser ativados extra-mitocondrialmente. Nesse momento, sofrem ação da enzima acil-CoA sintetase, gerando um acil-CoA, onde o ácido graxo de cadeia longa é trans-esterifi cado à acilcarnitina através da ação catalítica da carnitina palmitoil transferase I localizada na face externa da membrana mitocôndria interna. A carnitina-acilcarnitina translocase age seqüencialmente, transferindo o complexo carnitina-acilCoA para a segunda carnitina palmitoil transferase, que, por sua vez, regenera a carnitina e o acil-CoA graxo. Este último, então, sofrerá sucessivas reações que vão culminar com a síntese de acetil 6A [7].
Biodisponibilidade de lipídios no exercício
O uso dos substratos durante o exercício físico é regulado por ação hormonal. Os hormônios são os principais agentes envolvidos em toda a dinâmica metabólica, acarretando mudanças nas reações como gliconeogênese, lipólise e cetogênese. Variam de concentração conforme o tipo, intensidade e duração do exercício, além de serem infl uenciados diretamente pela dieta e balanço energético do organismo. Os principais hormônios envolvidos na mobilização dos ácidos graxos são: glucagon, epinifrina, norepinifrina e também o hormônio de crescimento (GH) e o cortisol. O GH auxilia as ações das catecolaminas, potentes estimuladores da lipólise, ao passo que a insulina atua inibindo o processo. Desta forma, alterações plasmáticas de glicose seriam fundamentais para o perfi l hormonal e estímulo à lipólise.Durante o exercício, há uma estimulação do sistema nervoso simpático e aumento das concentrações plasmáticas das catecolaminas, diretamente relacionadas à intensidade do exercício. Em exercícios de baixa intensidade, o turnover dos AG aumenta cerca de cinco vezes enquanto que as concentrações de catecolaminas se elevam apenas 50% dos valores basais, ao passo que em exercícios moderados e intensos, as catecolaminas aumentam de 3-6 e de 17-19 vezes respectivamente. Mas ainda assim, existem vários fatores que vão afetar o turnover dos ácidos graxos em exercícios moderados e intensos como a perfusão do tecido adiposo, o fl uxo pela via glicolítica, a demanda energética e os níveis plasmáticos de insulina [7].
No repouso, a quantidade de AG que sai do tecido adiposo tipicamente excede a quantidade oxidada, sendo que a taxa de aparecimento no plasma é aproximadamente duas vezes a taxa de oxidação dos AG [8]. Além disso, uma grande porção dos AG liberados do tecido adiposo sofre reesterifi cação, principalmente pelo fígado [9].
Exercícios realizados de 25 a 65% do VO2 máximo (leves a moderados) estão associados a um aumento de 5 a 10 vezes na oxidação de lipídios, quando comparado às taxas de repouso, dado o aumento da demanda energética muscular e pelo aumento da disponibilidade de ácidos graxos. Em adição, o percentual dos AG que são liberados do tecido adiposo comparado àqueles que são reesterifi cados, cai pela metade [10] em função de alterações hemodinâmicas. Vale acrescentar que, o aumento da remoção de AG do tecido adiposo pelo aumento do fl uxo sangüíneo, é necessário para prevenir a acumulação localizada de AG com um grande potencial tóxico. Concentrações acima de 2mmol/l já são consideradas tóxicas [11]. Durante exercícios prolongados de baixa e moderada intensidade, a concentração plasmática de AGL geralmente aumenta e contribui para o aumento da remoção de AGL do tecido adiposo. Embora não exista uma relação linear entre a liberação de AGL musculares e a captação plasmática dos mesmos e ainda, sua oxidação durante todas as condições de exercício, a liberação de AGL para os músculos afeta diretamente a oxidação dos ácidos graxos [1].
Klein [12] demonstrou que nos primeiros 120 min de exercício a taxa de lipólise e aproximadamente duas vezes a taxa de oxidação dos AG. Entretanto, a captação dos mesmos da corrente sanguínea é similar a taxa de oxidação durante este período. Dois outros trabalhos relatam que a taxa de captação do AG é menor que a taxa de oxidação nas primeiras 2 horas de exercício [13]. Essas evidências sugerem a existência de uma outra fonte de AG (triglicerídeos intramusculares- TGIM) sendo oxidados paralelamente aos AG oriundos do tecido adiposo.Romijn et al. [14] sugere que os TGIM representem uma porção considerável de toda a gordura metabolizada durante o exercício de endurance. Outros pesquisadores avaliam a utilização dos TG plasmáticos e propõe que apenas 5% e no máximo, 10% do total de energia produzido durante o exercício seja proveniente destes lipídios [15].Após duas horas de exercício, a taxa de captação do AG se torna maior que a de oxidação, sugerindo que os AG oriundos do tecido adiposo e liberados no plasma são capazes de suprir toda a necessidade de AG dos músculos ativos durante o exercício [9].A disponibilidade de AG para a oxidação vai depender da lipólise no tecido adiposo, transporte pelo sangue e captação pela célula muscular. Entretanto, a lipólise dos triglicerídeos intramusculares pode ser um outro fator determinante na biodisponibilidade dos AG para o exercício, especialmente para atletas de endurance. Durante os primeiros minutos de exercício, a concentração de AG no plasma declina em função do atraso entre a oferta dos mesmos pela lipólise e o aumento da captação muscular. Uma vez que a lipólise é estimulada e a reesterifi cação é suprimida, a tendência é que a concentração dos AG no plasma aumente progressivamente durante exercícios sub-máximos [10]. Quando exercícios são realizados em altas intensidades (> 80% VO2máx), a disponibilidade dos AG pode ser comprometida como resultado da queda da liberação de AG do tecido adiposo [14], em parte atribuído ao acúmulo de ácido lático que ocorre nesta situação.De acordo com Turcotte [15], as contrações musculares aumentam em níveis máximos a captação de ácidos graxos e a oxidação em perfusados musculares esqueléticos. O que poderia também estar relacionado com o aumento da expressão gênica da proteína transportadora FAT. A realização de exercícios aeróbicos tem mostrado aumentar o conteúdo da proteína muscular FATP, em humanos, mas os achados mais interessantes evidenciam que a proteína transportadora FAT (FAT/CD36) seria translocada da mesma maneira que os transportadores GLUT 4, promovendo uma maior captação de AG [1].Especula-se também que o estado energético das células seria um ponto importante na ativação dos transportadores e em sua translocação durante o exercício. Seria esperado que as concentrações de Ca+2, AMP, ADP e Pi estivessem envolvidos uma vez que participam de regulações enzimáticas de várias vias metabólicas. Certamente, a ativação da enzima AMP kinase, com conseqüente aumento do AMP intracelular seria um ponto importante, pois já foi demonstrado estar correlacionado com o aumento da oxidação de ácidos graxos tanto no repouso quanto no exercício [16].Assim, a utilização dos lipídios durante os exercícios é diretamente dependente da intensidade e duração do esforço, das reservas musculares de triglicerídeos, da perfusão tecidual e da capacidade enzimática da maquinaria metabólica do organismo para atender a demanda energética durante atividades físicas.